Torto Arado

Onze pessoas e um ACONTECIMENTO.

Angelita, Rebeca, Marla, Liliane, Nonato, Anabel, Darlene, Eliene, Lindalva, Ana Paula e Carla e… Torto Arado – O Acontecimento.

 

O dia – 11 de abril de 2021 – domingo, 16 horas, em Brasília. O Veredas se reúne pra se render a uma comunidade quilombola que vive na Fazenda Água Negra na Chapada Diamantina e que escancara o vício colonial enraizado nos rincões deste país.

 

A saga das irmãs Bibiana e Belonísia, tão trágica, quanto heróica, nos arrasta no que temos de mais visceral: nossa relação com o outro/Bibiana, nossa relação com a natureza e conosco/Belonísia, nossa relação com o metafísico/Rita Pescadeira.

 

Torto Arado é daqueles livros que nos marcam… um corte de fio, a cicatriz profunda que, ao mesmo tempo, nos aleija e nos expõem em nossas piores mazelas históricas… que ainda acontecem… trata com tanta propriedade, e força, e delicadeza, temas intrínsecos à nossa formação individual, social e espiritual, que não há como não se sentir movido: casa, terra, família, comunidade, festa, metafísica, direitos, raízes, descendência, História, natureza, tudo misturado e entrelaçado… nós… que nascemos nesta terra, não temos como fugir de torto arado.

 

Como em Belonísia, esse arado torto existe em nós, se move dentro de nós, aprofunda sulcos na nossa alma aleijada, nos corpos historicamente violentados, a exemplo de Belonísia arrastamos um pé ferido, inflamado pelo espinho histórico das injustiças sociais… e, diante desta herança colonial melancólica e raivosa, intuímos que PRECISAMOS ouvir o clamor destas três faces que existem em nós… sim, porque Torto Arado é um acontecimento, mas é também um chamamento pra que deixemos a Belonísia que nos habita reforçar o nosso respeito à ancestralidade, pra que floresçamos a Bibiana que detém a fala pelos interesses da comunidade, e pra que invoquemos a força e a Justiça pelos desvalidos.

 

Torto Arado invoca e convoca, atua no espiritual e no social e nos faz reafirmar estas mesmas três facetas nessa entidade que é a Literatura… o livro, esse arado meio torto e velho, esse instrumento que nos sulca, às vezes de um jeito dolorido, ele também prepara para a semeia, nos convoca e nos reúne socialmente, faz com que nos pensemos como indivíduos, nos reconheçamos, avaliemos a nossa própria história e qual rumo dar a ela, e, finalmente, invoca e manifesta o poder do espírito da ação.

 

Torto Arado acontece dentro da gente, faz com que, inevitavelmente, reconheçamos a ancestralidade, a vocação para a terra, a busca da Casa, o clamor pela Justiça e pela reparação no âmbito individual e coletivo, como pessoa e como povo, e dentro destes grandes eixos, a saga das irmãs Bibiana e Belonísia fala de memória e História, direito à terra, respeito à terra e aos saberes populares, direito à casa, questão de gênero, machismo, patriarcado, lideranças comunitárias, respeito às diferentes religiões, servidão, racismo, comunidade, coronelismo, latifúndio, justiça, saúde, individualismo, coletividade, família, identidade, trabalho, poder, vocação, escola, educação, violência, paz, representatividade.. e por aí vai…

 

Na mídia muito se falou que Torto Arado é um clássico… talvez tal afirmação seja precoce, mas não é precoce festejar um livro ser tão premiado, tão desejado, adquirido e lido, refletido. Certamente, não desconsiderando as qualidades literárias do livro, esse sucesso seja uma evidência gritante da sede, da necessidade, que temos de pensar a nossa História, refletir sobre ela, exigir reparação e construir uma sociedade mais justa. Como bem disse Itamar Vieira Júnior, o autor, os instrumentos democráticos nós temos – a Lei – precisamos que ela seja aplicada.

 

Ainda hoje quando me reporto a Torto Arado, meus anos de vivência no nordeste de Goiás batem forte… consigo ver e ouvir os professores das quatorze escolas rurais a nos receber, os chapadões, ou muito verdes na época das chuvas, ou acinzentados na época da seca… a Kombi da merenda que, ou atolava nos areões, ou atolava nos lagoões que se formavam.

 

Durante um período do tempo em que trabalhei lá, as escolas não tinham luz, não tinham água, não tinham banheiros… não havia geladeira, a merenda era comprada considerando-se que não havia como conservar coisas que precisariam ser refrigeradas, a água era recolhida da chuva em tonéis, ou então, os professores buscavam água no rio próximo (ou não tão próximo) e deixavam em tonéis em processo de sedimentação.. as reuniões pedagógicas eram verdadeiros eventos pra comunidade escolar e, para mim, em particular, era um momento de uma profunda aprendizagem com aquelas pessoas que possuíam saberes tão mais profundos e eficientes do que os meus naquele território.

 

As festas nas comunidades (escolares também) eram sempre vinculadas à religiosidade e os líderes comunitários da região organizavam tais eventos, que duravam dias em uma mistura de reza, devoção, bebida, cantoria e comida – uma celebração da vida – as mulheres preparavam biscoitos, bolos, durante dias, carneavam-se bois, colhiam-se frutos da época e a festa durava semana – havia procissões dos rezadores entre as fazendas ao longo da semana (um professor – Isaías – tinha um caderninho cheio de anotações dele com todas as rezas e ladainhas, um verdadeiro roteiro devocional no qual o falar característico daquela região se misturava com o latim (uma pérola documental), e a culminância se dava em uma fazenda pré-determinada com festança pelo final de semana todo – Festa de Santa Rita, Festa do Divino e Festa de Reis eram as festas que movimentavam toda a comunidade rural, cada uma em sua região.

 

As famílias dos professores abraçavam as escolas como se fossem a própria casa… a escola era cuidada/preservada como se fosse um bem da família. Durante dez anos da minha vida profissional, as visitas às escolas rurais eram os dias mais felizes e de maior aprendizado…

 

Quando voltei para Brasília, as quatorze escolas viraram oito, todos os professores estavam em universidade, havia poço artesiano próximo às escolas, água potável, banheiros, cozinhas equipadas e em cada região, uma escola polo informatizada… fruto do investimento, da aplicação da lei e da vontade política do gestor público interessado no desenvolvimento e na qualidade de vida daquelas pessoas, mas também da união das comunidades que se fortaleciam juntas.

 

 

 

Nessa nossa trajetória pelo fio de corte, pelo torto arado e pelo rio de sangue chegamos ao fim com a frase “Sobre a terra há de viver sempre o mais forte” e uma das maneiras de se constituir força é conhecer a própria História.
Despeço-me de vocês com vontade de reler alguns trechos de Torto Arado e com alguns “presentes” : indicações de filme – “Terra deu terra come” e vídeos de um grupo musical vinculado à UCG chamado “Sons do Cerrado” que nos deu algumas pérolas junto ao cancioneiro do interior de Goiás.
Beijo, Carla.

 

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