Tudo é rio

Sangue, sêmen e lágrimas

1º de maio de 2022 – Parque Vivencial II do Lago Norte

O que é o amor? Pode-se perdoar o imperdoável? Perguntas que atravessam constantemente as conversas naquele dia 1.

 

Darlene, Cláudia, Angelita, Liliane, Rebeca, Anabel, Lindalva, Maria José, Ana Paula, Nonato, e esta que vos escreve. Todos nós atravessados pelas duas perguntas que volta e meia voltavam, ressurgiam, numa tentativa de entendimento da condição humana… tal qual um rio intermitente, daqueles que aparecem saudáveis nas chuvas e somem nas épocas duras de estiagem… o que é o amor? É possível para o amor perdoar o que é imperdoável? É possível para o amor manter-se vivo, ainda que não visível, e , então, depois, quando dos resultados educativos de seu sumiço pedagógico, reaparecer… tal qual um rio intermitente?

 

Venâncio, Dalva e Lucy, personagens verossímeis em um interior do Brasil profundo, sem nome, sem localização geográfica – o que pode inteferir um interior do humano, inominável e sem demarcação – assombrado pelas emoções mais cruas e sedimentadas nas relações patriarcais?

 

Venâncio ama (?) Dalva, com um amor tão dedicado e espreitador que beira à obsessão. Venâncio conhece o amor? Ou conhece apenas uma versão própria do que pensa que seja o amor? Seus sentimentos, emoções, cuidados e dedicação estão constantemente perfurados pelo medo, pela insegurança, pelo sentimento de menos valia, pelo desamor próprio, pelo ciúme, pela posse… pode o amor se assentar em bases tão ordinariamente humanas?

 

Dalva ama (?) Venâncio… com um amor tão certo e definitivo, ela serena dentro de si a certeza de que aquele homem é o seu homem, e é bom… um bom homem… ela acredita que ele é aquele homem que ela enxerga… até que este homem testa o seu amor da maneira mais cruel, tira dela o “objeto” que acredita diminuir, dividir, aquele amor que deve ser só para… o amor de Dalva um rio intermitente? Seca no estio, mas resiste, e emana líquida com a “chuva” que lava tudo?

 

Lucy ama (?) Venâncio… a busca incessante de Lucy de si mesma nos olhos dependentes de seus amantes para quando ela se acerca e Venâncio… é amor essa busca de si mesmo no outro? O amor permite que se arranque a dentada o sentimento que se quer pra si, mas que reside no corpo do outro? Se se comer o amor, em uma espécie de ritual antropofágico, ele sobreviverá?

 

Carla Madeira, a autora, disse que começou a escrever Tudo é Rio no ano 2000. Ao escrever a cena mais brutal da história, travou… quatorze anos depois, após algum tempo de terapia, as palavras começaram a desprender-se dos galhos secos aos quais ficaram presas durante a “enchente”. Logo em seguida, o rio secou… as palavras permaneceram durante quatorze anos presas aos galhos no leite seco do rio… quatorze anos depois, umedeceu, e as palavras correram caudalosas durante oito meses… o livro emergiu. O ano: 2014.

 

2021 – Tudo é Rio ganha popularidade em seu relançamento, a fluência e o fluxo narrativo de Carla Madeira carregam o leitor pelo leito desse rio, que é vivo… o humano, as relações humanas plenas de potência, para o bem e para o mal, para a alegria e para a violência… um embaraçamento, cheio de nós, de desprendimentos, de aproximações e afastamentos, de delicadezas e de violências… mas eis que, chega o desfecho… o desfecho que parece seguir a receita pronta do “felizes para sempre”… mas… será mesmo?
Morei alguns anos no interior esquecido do Brasil, cerradão, árvores tortas, espinhoso, retorcido, galhos cheios de voltas, cheios de aproximações e afastamentos, casca grossa, aparência bruta, raízes profundas, fortes, sobreviventes em um meio no qual o estio chega a se estender por cinco/seis meses… o povo… forjado nos mesmos moldes… eu vi, acompanhei, várias histórias em que a paixão, a violência, a delicadeza, e a brutalidade se movimentavam, eclodiam com menos sutilezas, demonstrações explícitas da potência do humano… e a despeito, do horror que por vezes me causaram, as relações se perpetuavam, a exemplo de Dalva e Venâncio…

des-fecho: tirar o fecho, soltar… soltar… as amarras para os passos e compassos da vida, da história, que continua “… o próximo passo trazia a possibilidade dos abismos. Mas alguma música já se podia ouvir”.

 

Passou um tempo desde maio último, em julho, também em agosto e setembro vi e revi a exposição que esteve no CCBB de Brasília – Marc Chagall – sonho de amor. De tudo na exposição, confesso que o que me fez voltar, e voltar, e voltar, foi a instalação Air Fountain, de Daniel Wurtzel – pra mim, um exercício de contemplação poética do que há de movimento na vida. Sobre uma plataforma circular, de onde, através de frestas, ar é expelido… sob a força de sua ação dois tecidos transparentes dançam… enroscam-se, retorcem-se, amarram-se, “empurram-se”, abraçam-se, tocam-se, esbarram-se, escorregam-se, deslizam-se, fogem, aproximam-se… uma dança poética… várias, várias vezes me vi pensando e lembrando de fases de minha vida, das relações presentes em meus dias, dos movimentos de amor, da aproximação e da fuga, do encontro e da repulsa – da seca e da chuva que habitam essas relações… é muito emocionante. Nessa expressão artística, revivi vários sentimentos e emoções, inclusive os ruins… pura poesia.

 

Em alguns momentos dessa dança, às vezes, um dos tecidos caía, saía do espaço do círculo… era como que empurrado, jogado, para fora… mas, logo um elemento estranho (o monitor da exposição) o recolocava, o jogava, na dança… e a dinâmica desse emaranhado de novo recomeçava…

 

Chagall, em seu sonho de amor, afirmava: “Nas artes, como na vida, tudo é possível, desde que se baseie no amor”.

 

Chagall estava certo? Pode-se perdoar o imperdoável? Mas… o que é o amor?

 

Pra vocês um videozinho curto de Air Fountain:

 

Grande beijo,
Carla.

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